29 de abril de 2011

Fábula

Nasci em 1983, em outro mundo.

Li (me leram) os clássicos, alguns deles, Chapeuzinho Vermelho, Alice no País das Maravilhas, As Viagens de Gulliver. Nunca tive um só livro de princesas, Cinderela, Branca de Neve me eram longínquas, estranhas, os sete anões sim, estes eram populares, havia monumentos em sua homenagem nos jardins, no Uruguay havia tantos monumentos aos sete anões que pensava que haviam ajudado Artigas na luta pela independência do país. Mas eram as fábulas que vinham de graça em uns alfajores, que compunham minha vasta biblioteca de quase dez livrinhos. Os alfajores eram uma porcaria, mas as fábulas bem ilustradas em miniatura fascinantes, quando acabaram com a moral no mundo a fábrica deve ter falido. Mais tarde, com 6, leram para mim Horacio Quiroga, mas isso não vem ao caso, só comprova um esforço desmedido por parte dos tutores para tornar-me uma criança o mais esquisita possível.
Deus? Só entrava na casa da vizinha, na frente da porta tinha um santo perto dos anões.

Cheguei ao Brasil em pleno Fora Collor em tempo de comemorar jogando papeizinhos picados da janela do sétimo andar. O muro já tinha caído e eu achava que eles só existiam para que os gatos desfilassem por cima. 
Li (me leram) os clássicos, Manifesto Comunista, Que Fazer?, A Revolução Permanente. Por aqui os alfajores são tão ruins quanto aqueles em que vinham as fábulas, decidi baixar a glicose no sangue mas comprei a Revolução dos Bichos.
Me detive só nas teses revolucionárias, as que defendiam o latifúndio e o capital estavam no poder, podia apreciá-las na prática que é sempre mais rica que a teoria. E esta prática era muito rica, para poucos.
Com muro ou sem muro eu estava do lado certo, do lado daqueles que lutavam, ocupavam as ruas e as esplanadas contra privatizações, sucatemento de serviços básicos, concentração de terras, corrupção.
De lá para cá tudo mudou, e mudou tudo para não mudar quase nada...

Nesta sexta-feira, a sociedade do espetáculo prepara os meios de comunicação para o casamento do ano: o principe William e a plebeia Kate. Mas Kate Middleton é moderna e ri: "Ele tem sorte de estar comigo" .
E tem mesmo, o nobre tem muita sorte de estar com a plebeia, tem sorte de não haver perdido a cabeça junto com seus pares franceses e, em pleno século XXI, esbanjar R$ 50 milhões na cerimônia de seu casamento no momento em que a economia europeia agoniza e seus trabalhadores e estudantes arcam com planos de escassez, sempre começando por contrarreformas da previdência e cortes nos investimentos em educação. Na manhã de hoje, milhares de ingleses saem às ruas, para acompanhar o casamento real, com certeza não são os mesmos que somaram cinquenta mil contra cortes nas universidades inglesas no final de 2010. Os milhões que sobram no casamento faltaram ao povo do Egito que teve historicamente até suas múmias saqueadas por burguesia e nobreza inglesas e paga caro pela crise que impacta desde 2008. Ao longo da história e até os dias de hoje, direta ou indiretamente o Reino Unido - nem tão unido assim - sangra países do norte africano cujos povos ocupam as ruas e praças de suas cidades, organizam greves inéditas, avançam em formas democráticas de poder perante ditaduras até então legitimadas pela UE. Não durou somente o tempo necessário para vender revistas, jornais e mídia, está acontecendo, dia após dia.

No Reino Unido, o principe tem sorte de ter Kate representando a plebe. No Brasil os ruralistas tem sorte de ter Aldo representando a plebe, só não o comparo Chapeuzinho Vermelho sendo enganada pelo lobo pois ela ainda tinha floresta para cantarolar até a casa da vovó. Agora estamos sob efeito Alice:no país das maravilhas. No país da Alice se privatiza aos poucos, parcelado, fragmentado, por etapas, como a revolução.

Durante o trajeto para o casamento de Willliam e Kate duzentos cavalos marcharão ao lado da comitiva real. Cavalos são animais altivos e sensíveis, muito dignos, espero que os duzentos cavalos se revoltem, se amotinem contra tanta desigualdade e escracho.    

Águia Ana Campominado